sexta-feira, 8 agosto, 2025
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‘Comida estragada e sem água potável’: funcionário relata condições análogas à escravidão após ser resgatado com mais de 500 colegas em obra de MT

Um dos 563 trabalhadores resgatados de condições análogas à escravidão em uma construção de usina em Porto Alegre do Norte, a 1.143 km de Cuiabá, descreveu como era a precariedade do local e parte da rotina de trabalho.

“Muito descaso, muita falta de responsabilidade com o funcionário. A água não era potável, era amarela, banheiro podre, a gente ficava sentindo aquele fedor da fossa e muito calor dentro dos quartos. A gente ia comer 11h30, quando dava 12h tinha que voltar e, muitas vezes, a comida estava estragada”, relatou.

O cenário de trabalho degradante era na construção de uma usina de etanol da empresa 3Tentos. A obra era executada pela TAO Construtora. A empresa tem quatro obras em andamento no estado, com cerca de 1,2 mil trabalhadores, sendo a unidade de Porto Alegre do Norte a maior delas.

Em nota, a 3tentos informou que adotou uma série de ações para apurar os fatos e avaliar as medidas cabíveis, além de colaborar com as autoridades responsáveis. Já a empresa TAO Construtora informou que está colaborando com a investigação da polícia e que, até o momento, não foi autuada sobre o caso.

Para reivindicar os direitos, eles protestaram e incendiaram os alojamentos no dia 20 de julho. A Polícia Militar esteve no local e, segundo os trabalhadores, os PMs atiraram contra eles e os obrigaram a voltar ao trabalho.

“A polícia chegou atirando, eles tinham conhecimento [da situação dos trabalhadores]. Um cara ficou com o peito todo furado, teve outro que se queimou (fotos abaixo)”, afirmou.

Polícia Militar informou que não tinha conhecimento da situação lamentável análoga à escravidão quando compareceram no protesto. Conforme o boletim de ocorrência, a polícia foi acionada após uma denúncia de que as instalações estavam sendo depredadas e incendiadas. Segundo a polícia, os trabalhadores estavam exaltados e, em determinado momento, após o representante da empresa tentou conversar, os trabalhadores começaram a proferir ameaças, atirar pedras e avançar contra os policiais.

Trabalhadores ficaram feridos durante protesto — Foto: MTE

Ainda de acordo com o boletim de ocorrência, os alojamentos e parte do refeitório ficaram destruídos. O Corpo de Bombeiros foi acionado para conter o incêndio e dois funcionários foram conduzidos à delegacia.

O protesto resultou na investigação do Ministério Público do Trabalho (MPT) e do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) que levou ao resgate dos trabalhadores e à abertura de uma investigação sobre tráfico de pessoas para trabalho análogo à escravidão.

A TAO Construtora informou que alguns trabalhadores foram realocados depois de terem sido afetados por um incêndio criminoso no alojamento, provocado por colegas. A construtora disse ainda que firmou, com o MPT, um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com caráter emergencial e reparatório, sem confissão de culpa.

“Importante destacar que uma grande quantidade de colaboradores manifestou o desejo de retornar ao trabalho, o que demonstra a relação de confiança construída no canteiro de obras […] A TAO Construtora repudia veementemente qualquer prática análoga à escravidão ou tráfico de pessoas”, disse. 

Segundo o MPT, após o incêndio, foram registradas 18 demissões por justa causa, 173 rescisões antecipadas de contratos e 42 pedidos de demissão. Cerca de 60 trabalhadores perderam todos os pertences pessoais no incêndio.

De acordo com o MTE, a empresa não conseguiu preencher as vagas com mão de obra local e, por isso, adotou uma estratégia de recrutamento em estados do Norte e Nordeste, principalmente no MaranhãoPará Piauí.

Conforme a investigação, os trabalhadores eram atraídos por meio de anúncios veiculados em carros de som e mensagens compartilhadas em grupos de WhatsApp, com promessas enganosas de altos ganhos com horas extra (entenda mais abaixo).

🤝As contratações e jornada de trabalho

 

Operação teve início após trabalhadores atearem fogo em protesto contra condições degradantes — Foto: MTE

Operação teve início após trabalhadores atearem fogo em protesto contra condições degradantes — Foto: MTE

As horas extras não eram registradas formalmente, os pagamentos eram feitos “por fora”, em dinheiro ou cheques, sem registro em folha, o que caracteriza sonegação fiscal. Além disso, essas horas extras prometidas na contratação, faziam parte de uma falsa promessa de altos rendimentos.

A alimentação também era alvo de denúncias. Os trabalhadores recebiam comida repetitiva, com relatos de larvas, moscas e alimentos deteriorados. O refeitório não tinha ventilação, o que forçava muitos a comerem em pé ou fora do local destinado às refeições.

O Ministério Público do Trabalho está em processo de negociação de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) com a empresa, para garantir o pagamento das rescisões e outros direitos dos trabalhadores.

Condições precárias identificadas na obra:

Alojamentos

  • Dormitórios com apenas 12 m², abrigando até quatro pessoas por quarto
  • Ausência de ventilação adequada e climatização
  • Apenas um ventilador para quatro trabalhadores
  • Superlotação: alguns operários dormiam no chão, sob mesas, por falta de camas
  • Colchões velhos e de má qualidade, cobertos apenas com lençol fino
  • Ausência de travesseiros, fronhas e roupas de cama adequadas
  • Falta de espaço para armazenar pertences pessoais

Infraestrutura e saneamento

  • Falhas no fornecimento de energia elétrica, o que interrompia o abastecimento de água dos poços artesianos
  • Banhos tomados com canecas, em razão da falta de água
  • Longas filas para banheiros sujos
  • Após incêndio, uso de água turva retirada do Rio Tapirapé, imprópria para consumo

 

Condições de trabalho

  • Canteiro de obras com excesso de poeira, ambientes sem ventilação e refeitórios inadequados
  • Falta de equipamentos de proteção individual (EPIs) para manipulação de produtos
  • Ocorrência de acidentes de trabalho não comunicados oficialmente
  • Relatos de lesões nas mãos e nos pés e doenças de pele
  • Ausência de emissão das Comunicações de Acidente de Trabalho (CATs), impedindo acesso a benefícios do INSS e atendimento médico

O que é trabalho análogo à escravidão?

 

O Código Penal define como trabalho análogo à escravidão aquele que é “caracterizado pela submissão de alguém a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou seu preposto”.

Todo trabalhador resgatado por um auditor-fiscal do Trabalho tem, por lei, direito ao benefício chamado Seguro-Desemprego do Trabalhador Resgatado (SDTR), que é pago em três parcelas no valor de um salário-mínimo cada.

Esse benefício, somado à garantia dos direitos trabalhistas cobrados dos empregadores, busca oferecer condições básicas para que o trabalhador ou trabalhadora possa recomeçar sua vida após sofrer uma grave violação de direitos.

Além disso, a pessoa resgatada é encaminhada à rede de Assistência Social, onde recebe acolhimento e é direcionada para as políticas públicas mais adequadas ao seu perfil e necessidades específicas.

⚠️ COMO DENUNCIAR? – Existe um canal específico para denúncias de trabalho análogo à escravidão: é o Sistema Ipê, disponível pela internet. O denunciante não precisa se identificar, basta acessar o sistema e inserir o maior número possível de informações.

A ideia é que a fiscalização possa, a partir dessas informações do denunciante, analisar se o caso de fato configura trabalho análogo à escravidão e realizar as verificações no local.

Por Jardes Johnson, Bárbara Siviero, g1 MT e TV Centro América.

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