“Se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, estou pronto! Digam ao povo que fico.” Ao contrário do imaginário popular, muito provavelmente essa frase não foi dita pelo então príncipe regente Pedro 1º (1798-1834) no episódio conhecido como Dia do Fico. Segundo historiadores, trata-se de mais uma camada das construções da ideia de nação brasileira, na esteira da posterior Independência do Brasil.
Mas é inegável que o tal dia, ocorrido há exatos 200 anos, em 9 de janeiro de 1822, na Câmara do Rio, foi a materialização da queda-de-braço entre o Reino de Portugal e a colônia brasileira. E aí reside sua importância histórica.
“[Na época, o ato de permanecer no Brasil] foi visto como astuto, audacioso e, principalmente, arriscado. Tratava-se de contraposição às determinações do poder de representação das Cortes de Lisboa”, explica o historiador Paulo Henrique Martinez, da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
“Em Portugal, o gesto foi recebido pelos defensores de uma Constituição como ato de arrogância e de rebeldia, mas foi visto com alento pela Casa Real. Aqui no Brasil, foi festejado como decisão democrática e de expressão soberana da vontade do povo, em defesa de interesses ‘brasileiros’.”
Segundo o historiador Marcelo Cheche Galves, da Universidade Estadual do Maranhão (Uema), o Fico integra “um conjunto de animosidades dentro do mundo português”, num momento em que a corte buscava o “esvaziamento do poder do Rio de Janeiro como centro de autoridade” — depois que a família real decidiu regressar ao Velho Mundo, em 1821.
“Pedro ficou como regente e, a partir de então, passou a lidar com determinações das Cortes, como fechamento de instituições que funcionavam no Rio de Janeiro”, explica Galves. “Esse é o ponto, não tem nada de independência ainda.”
O estopim foi um decreto real emitido em outubro, que, entre outras questões, obrigava o retorno imediato do príncipe regente a Portugal — nomeando uma junta para governar o Brasil.
Imaginário da construção nacional
De acordo com Galves, a narrativa que passou a situar o episódio como um antecedente do processo de emancipação política do Brasil foi construído “ao longo do século 19 e em parte do século 20” em um esforço intencional de “inventar a nação brasileira”. “Por isso o Dia do Fico ficou como algo heroico, o dia em que o Brasil começou a se livrar de Portugal”, afirma.
“Se era independência, era no sentido de mais autonomia. Não no sentido de separação total [de Portugal]”, contextualiza o professor da Uema.
Martinez concorda: não podemos considerar o Dia do Fico uma espécie de pontapé da Independência, “sob o risco de repetir acriticamente a construção política e ideológica da historiografia da unidade política nacional, tendo o Império e a Casa de Bragança como seus promotores e avalistas”.